Batismo infantil – nós batizamos nossas crianças
As igrejas históricas que adotam o batismo infantil têm sido questionadas nestes tempos de rápidas transições no cenário eclesiástico acerca de uma das suas mais tradicionais doutrinas: o batismo de crianças. Não seria esta uma prática ou resquício da igreja romana que teria se afastado da pureza original do evangelho? Quais as bases bíblicas para o batismo infantil, considerando-se que o Novo Testamento não tem um texto sequer que aponte explicitamente essa prática? Por que batizar uma criança, se ela ainda é incapaz de crer e não tem consciência do que está se passando naquele momento? Não seria mais prudente deixar que ela mesma decida quando chegar à idade da razão, enquanto os pais dar-lhe-iam toda a instrução cristã necessária? Teria o batismo algum efeito mágico que impeça a criança de desviar-se do mal, tornando-a automaticamente um nascido de novo? Produziria o batismo a regeneração? Se batizamos, por que não ministramos também a ceia a ela?
Estas e outras perguntas estão na mente de muitos na igreja. Há ainda aqueles que tendo sido batizados na infância e, mais tarde, ao experimentar algo novo em seu relacionamento com Deus, questionam-se se não deveriam, por causa daquela experiência, serem batizados novamente, agora com uma nova consciência de sua vida cristã. Todas essas perguntas são legítimas e não podem ser ignoradas. Neste artigo, apresentaremos as razões porque batizamos nossas crianças nos aspectos bíblicos, teológicos e históricos.
1) O que diz o Novo Testamento sobre o assunto?
É preciso ser honesto: o Novo Testamento não traz nenhum registro explícito de batismo de crianças. Mas, por outro lado, ele também não traz nenhum registro de batismos de adultos filhos de pais crentes. Oscar Cullmann nos lembra que, à época que os primeiros livros do Novo Testamento começaram a ser escritos, por volta do ano 50, 20 anos portanto depois das primeiras conversões de Pentecostes, o Novo Testamento não faz sequer uma referência indireta sobre a prática de batismos de adultos nascidos na fé cristã. Portanto, este silêncio do Novo Testamento é muito mais expressivo do que sobre o batismo infantil.1 Geoffrey Bromiley, no seu estudo sobre o batismo, também acrescenta que o Novo Testamento desconhece qualquer prática de apresentar as crianças ou ainda que tal costume tenha qualquer fundamento no Antigo Testamento.2
O contexto em que o Novo Testamento foi escrito é eminentemente missionário, com indivíduos ou famílias (casas) se convertendo e recebendo o batismo. A “casa de Estéfanas” (1Co 1.17); Lídia e “toda a sua casa” (At 16.15); o carcereiro “e todos os seus” (At 16.33); Crispo, que tendo crido, “com toda sua casa” foram batizados (At 18.8); e Cornélio (At 11.14; 10.48) são exemplos de conversões e batismos incluindo toda a casa. Joachim Jeremias, notável erudito do Novo Testamento, analisando o que ele chama de “fórmula oikos” remete-nos ao Antigo Testamento onde essa expressão tem um caráter abrangente: crianças, recém-nascidos, servos, mulheres. Veja as seguintes passagens: 1Sm 22.16-19; 1.21-23; Gn 45.18-19; 46.7. Embora não haja provas que, em todas aquelas ocorrências do Novo Testamento, crianças tenham sido batizadas, é certo, porém, que ela não teria sido usada se Paulo e Lucas quisessem excluir as crianças ou ainda se, usando-a, deveriam fazer a ressalva: “toda sua casa, exceto as crianças”, conclui Jeremias.3
Outra passagem a ser considerada ainda é Atos 2.38. Quando Pedro adverte seus ouvintes sobre arrependimento, batismo e dom do Espírito, ele acrescenta que “a promessa é para vós e vossos filhos”. Levando-se em conta sentido escatológico do batismo que, ao rompermos com o presente mundo, somos incorporados na igreja e selados para a redenção, bem como a expectativa da igreja primitiva do retomo iminente de Cristo, é altamente improvável que a expressão “vossos filhos” refira-se às gerações vindouras e que os autores do Novo Testamento pensassem em uma separação da família por critérios de idade, principalmente porque a noção de indivíduo e o consequente individualismo ocidental moderno são conceitos totalmente estranhos ao mundo bíblico. A solidariedade da família, ou seja, a ideia que a família é uma unidade e que participa conjuntamente do destino do seu cabeça é ilustrada pelo caso de Acã (Js 7.24) e o carcereiro (At 16.31); constituindo-se elemento fundamental para compreensão da Escritura.
2) O que diz o Antigo Testamento sobre o assunto?
Tem havido certa tendência de relegar o Antigo Testamento a um plano ultrapassado, secundário e simbólico. Marcião, no séc. II; os anabatistas, do séc. XVI; os dispensacionalistas e aqueles que advogam uma revelação evolutiva incorreram nesse erro, destruindo a unidade da Escritura. Quando olhamos para o Antigo Testamento, vemos a aliança que Deus estabelece com seu povo, inicialmente na pessoa de Abraão e, posteriormente, confirmada no Sinal. Há promessas, obrigações e sinais nessa aliança. Obviamente que existem diferenças entre a antiga aliança e a nova, mas não podemos afirmar uma supressão ou reduzi-la a uma função meramente tipológica. Bromiley coloca na seguinte perspectiva: “A velha aliança é a da promessa, e a nova aliança é a da promessa cumprida. Fundamentalmente, entretanto, este pacto é um, como é um o propósito, a palavra e a obra de Deus”.4 Dois elementos são nítidos na antiga aliança: a circuncisão e a Páscoa. Em ambos, a família está envolvida. Não apenas alguns indivíduos isoladamente, mas todos os filhos de Israel são participantes das promessas neles contidos. O batismo e a ceia no Novo Testamento correspondem claramente a esses dois elementos. No caso do batismo, tal correlação é afirmada por Paulo em Colossenses 2.11-12. Se voltarmos o texto da instituição da circuncisão (Gn 17.9-14), verificamos que, embora as mulheres estivessem ali excluídas, Deus está tratando não com indivíduos isoladamente, mas com a ideia da família. No Novo Testamento, o batismo das mulheres exemplifica a quebra das barreiras em Cristo (Gl 3.26-29) e aqui Paulo novamente relembra as promessas feitas a Abraão da qual nos tomamos partícipes em Cristo pelo batismo.
Sabiam os meninos do Antigo Testamento o significado da circuncisão? Pediam eles para serem circuncidados? Não! E, se soubessem, não pediriam de modo algum! Contudo, os pais, crendo na promessa, circuncidavam os filhos, inserindo-os no povo de Deus e fazendo-os partícipes das promessas. Muitos pais hoje têm escrúpulos de impor a religião aos filhos, contudo não sentem o mesmo embaraço quando lhes escolhem um nome, vestuário, alimento, medicamentos, educação, etc. Qual o pai ou mãe que espera o filho ou a filha crescer para decidir sozinho se quer ir à escola, comer determinado alimento indispensável à saúde, decidir se toma ou não vacina, se quer ou não ir ao médico? Ora, se nós no propósito de fazer o melhor para o bem-estar dos filhos tomamos decisões que irão afetá-los por toda vida, por que não os consagrar a Deus pelo batismo quando Deus tem promessas e deseja salvar toda a família?
3) Considerações históricas
Joachim Jeremias, ainda no seu estudo mencionado, aponta para a inegável relação entre o batismo de prosélitos e o batismo cristão, tanto na terminologia empregada, quanto na administração. Embora o batismo dos prosélitos tenha significado teológico distinto do batismo cristão, a terminologia empregada pelo Novo Testamento (Ef 2.13; Cl 3.1; Gl 6.15; 2Co 5.17) é muito evidente para ser desprezada, concluindo-se que houve adoção de conceitos, a exemplo de outras circunstâncias, pois judaísmo e cristianismo se tocam em muitos pontos. Certas práticas da sinagoga foram transpostas para a igreja. A figura do ancião (presbítero) é uma delas e naturalmente o batismo de famílias de prosélitos. Uma das instruções a respeito daquele batismo dizia que as crianças deviam ser circuncidadas e, logo após, batizadas.5 No ambiente cristão, o batismo substituiu a circuncisão, como “selo da justiça da fé” (Rm 4.11, Ef. 1.22; 4.30; 2Co 1.22; Cl 2.11-13) e como ação de um Deus que põe sua marca nos seus para evitar a destruição (Gn 4.15; Ex 12.22).
Valemo-nos ainda de outras informações históricas de Jeremias sobre o assunto:
a) Inúmeros epitáfios de crianças indicam que haviam sido batizadas. Destacamos este: “Zózimus, um crente de crentes (filho), descansa aqui, tendo vivido 2 anos, 1 mês e 25 dias” Ressalte-se que a terminologia crente (pistós) é designação apropriada para o batizado em distinção do catecúmeno, o qual ainda não foi batizado.6 Inúmeros outros casos semelhantes são listados por Jeremias no mesmo estudo.
b) Policarpo, por ocasião do seu martírio (ca.167 AD), afirmara que “por oitenta e seis anos tenho-o servido e Ele nunca me decepcionou, como poderia eu agora blasfemar contra meu Rei e Salvador?” Se a expressão “tenho servido-o” for entendida, como vários autores o fazem, no sentido de batismo, Policarpo teria sido batizado por volta do ano 80 AD o que indicaria a prática desde o final da era apostólica.7 Policrates, bispo de Éfeso, menciona em uma das suas cartas que é filho de cristãos: “tenho vivido no Senhor desde os seis anos de idade” (ca.125)8, indicando possivelmente seu batismo àquela idade.
c) Um dos testemunhos mais contundentes vem de Orígenes que escreve nas suas homilias em Lucas: “Portanto, as crianças são também batizadas”; nos sermões sobre Levítico, que o batismo era aplicado “às crianças também, segundo o costume da igreja”; e no seu comentário de Romanos afirma que “a igreja recebeu dos apóstolos a tradição de batizar também as crianças”. Essas citações foram escritas provavelmente entre os anos 233-251. Orígenes não poderia ter se expressado assim se ele mesmo não tivesse sido batizado na infância. Ele nasceu em 185, provavelmente em Alexandria, era filho e neto de cristãos, segundo Eusébio.9 Entramos no campo das conjecturas, porém, provavelmente seu pai fora batizado na infância na primeira metade do séc. II.
d) Hipólito (160-235), na sua obra “Tradição Apostólica”, refletindo a prática litúrgica do fim do séc. II, instrui sobre a liturgia do batismo: “primeiro as crianças, incluindo as que não podiam falar (responder as perguntas), a seguir os homens e por último as mulheres.”10 Como o próprio nome da obra de Hipólito sugere, ele não estava introduzindo uma nova doutrina na igreja, mas apenas ordenando uma prática já confirmada e que não necessitava de justificação.
e) Tertuliano, considerado o primeiro teólogo latino da igreja, dá-nos uma importante evidência da prática do batismo infantil em seu livro “De Baptismo”, escrito por volta do ano 200-206. Ele defendia o adiamento do batismo em algumas situações como os filhos dos não casados ou pagãos. Lembrava ele ainda que o batismo colocava uma responsabilidade muito grande nos padrinhos os quais, morrendo, não poderiam cumprir suas promessas.11 O Sínodo de Cartago (251), Norte da África, região originária de Tertuliano, demonstrou que aquelas ideias não foram assimiladas, decidindo que o batismo devia efetuado logo após o nascimento, no segundo ou no terceiro dia no máximo.
f) Agostinho (354-430), na sua polêmica com Pelágio, reconhecia que, apesar das suas heresias, Pelágio não havia negado essa prática herdada desde os tempos apostólicos.12
4) Considerações finais
a) Não há registro na história da igreja primitiva sobre dois tipos de cristãos: batizados e não batizados. Também não há qualquer registro de introdução uma nova prática contrariando algum costume já estabelecido neste particular. Nenhuma literatura cristã antiga registra, como seria o caso, se essa prática tivesse sido repentinamente introduzida causando debate, polêmica no seio da igreja. Isto por certo atesta que o batismo de crianças não se constituiu em uma inovação herética ou mesmo esteve associado a qualquer doutrina herética dos primeiros séculos. A atitude de Tertuliano defendendo o adiamento confirma a prática existente.13
b) No que diz respeito ao aspecto teológico, tem se objetado ao batismo infantil com base no texto de Marcos 16.16, que diz “quem crer e for batizado será salvo, mas quem não crer será condenado”. As crianças não podem crer; logo, não podem ser batizadas e, consequentemente, serão condenadas. Essa seria a conclusão lógica, se não entendermos que, no contexto missionário do Novo Testamento, este texto aplica-se aos adultos. Caso contrário, como explicaríamos a afirmação de Jesus que das crianças é o Reino de Deus, uma vez que elas não podem crer? (Mc 10.15ss). Aliás, esta passagem onde Jesus abençoa as crianças, segundo Cullmann, fazia parte das instruções para o batismo na igreja primitiva e compunha uma antiga fórmula batismal. Cullmann aponta para o fato de que o verbo impedir (“não impeçais”, “não embaraceis”) aparece sob diferentes formas em vários batismos do Novo Testamento (At 8.36; 10.47; 11.17; Mt 3.13) sugerindo uma possível fórmula batismal.14
c) As crianças não podem crer; todavia, os pais, crendo nas promessas de Deus ao seu povo, consagram a Ele seus filhos pelo batismo na convicção de que, no tempo oportuno, eles virão por si mesmos a confirmar a decisão de fé tomada um dia pelos pais. As crianças não podem crer, mas ali está presente a fé de uma comunidade que crê na fidelidade de Deus e no seu propósito de salvar a família como um todo. A criança não pode crer, mas ali está uma comunidade que, antes que eles tivessem crido, antes que eles pudessem exercer qualquer fé pessoal em Cristo, Ele já havia efetuado um batismo geral na cruz, o qual, mais tarde nos alcançou (Lc 12.50; Mc 10.38). Nesse sentido, o batismo na cruz também antecedeu nossa fé. Este é o grande precedente que fundamenta o batismo antes da fé. E ninguém pode também alegar que o Espírito não opere em crianças. Ele é livre e soberano. João Batista foi cheio do Espírito no ventre de sua mãe (Lc 1.41).
d) O batismo não é nenhuma garantia de redenção ou regeneração, mas a esperança delas. Não há nenhum efeito mágico no batismo como querem alguns, mas, sim, uma decisão de fé que se expressa pelo compromisso de viver a Palavra, ensinar os seus princípios, traduzir em ações nossa confissão, a qual Deus, ao seu tempo e modo, honrará nossa fé, pois da fé viva de seus filhos Ele se agrada (Hb 11.6). Amém.
Rev. Áureo Rodrigues de Oliveira